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ZONAS DE HABITAR NÃO TÊM RAÇA

20 de Agosto, 2018
Embora ainda esteja muito intrínseca esta maneira redutora de pensar, julgo que só aqui mencionei uma vez que, há alguns anos, ao alcançar uma paragem de autocarro, curiosamente um que cria a ligação entre o centro da cidade e a zona periférica onde há uma grande concentração de população negra, cigana, mas também branca, passou por nós. No meu mundo, e tendo em conta o meu destino usual, pouco me importei com a sua passagem, uma postura normal mas que, para a senhora que coexistia no mesmo espaço do que eu, não valeu de nada.
Sem me perguntar se eu estaria interessada em apanhar aquele autocarro, ela associou a minha cor à minha casa, afirmando de que aquele transporte era para lugar x e que havia passado por nós, como se eu não tivesse reparado. Não fiz grande escândalo, como seria de esperar. Encolhi os ombros, regressei à minha música e, de caminho a casa, cogitei demasiado acerca da postura daquela mulher. Afinal, quem era ela para determinar em que zona moraria eu, apenas por ser negra?
Esta é uma de tantas outras histórias. Julgo que tenho uma sorte em particular por gostar de usar fones em todos os momentos possíveis, pois, a quantidade de bocas às quais eu já não devo ter escapado apenas pela obtusa relação e sem cabimento algum que as pessoas criam, de maneira a ganharem razão e alimentarem o seu ego. Nunca pensei neste meu refúgio como uma forma de evitar ouvir o que não devo, aliás, se eu oiço música incessantemente, é porque realmente aprecio a sua companhia. Mas chocou-me de facto o dia em que, sem grandes objetivos, caminhava eu pela avenida do Cais que cria uma ligação ao Terreiro, para apanhar o meu transporte.
Como sempre, eu ia a observar a natureza e posso descrever o quão acinzentado é que estava o céu e o quão movimentado estava aquele dia, em específico. Um carro surgiu algures e, tal como ele surgiu, eu continuava a investir na minha viagem quando, do nada, um homem cá fora me abordou, chamando, avisando de que um senhor buzinava para alguém. Numa fração de segundos, fitei o tal carro e logo percebi a estúpida comparação: ao volante, ia um senhor negro e que aguardava pela sua companhia. 
Curiosamente ou não, uma senhora branca, loira, esbelta, levantou-se do banco e dirigiu-se ao carro de sorriso no rosto, feliz por ir ter com o seu amigo, companheiro, um detalhe que pouco importa para o contexto. Atrapalhado, o homem que interrompeu a minha caminhada desculpou-se, talvez um tanto indignado pela sua tentativa de cumprir com a boa ação do dia ter tido um desfecho desagradável, a vergonha a assomar-lhe o rosto. Sou conhecida por andar sempre de semblante sério, porém, naqueles dois minutos, os meus olhos fuzilaram aquele indivíduo por ter sido tão presunçoso, preconceituoso, intrometido e indelicado. 
Rapidamente, ele se me desapareceu da frente, mesmo eu não tido deixado escapar uma palavra que fosse naquela situação, e eu lá continuei a andar, a raiva a formar-se-me no peito, em conflito com a indignação: porque raio é que, ainda hoje, existe espaço para estas associações? Lá porque sou negra não quer dizer que eu conheça todos os negros do planeta! Por acaso, os brancos se conhecem a todos por serem brancos? Senão, porquê a insistência quando as vítimas são os negros, os asiáticos, o raio que o parta? Até chegar à estação dos barcos, experienciei diversas explosões no meu interior, muitas memórias subindo pelas suas campas acima e muitas vontades de bater em alguém a formigar-me a pele.
Não sei quando ou onde é que aprendi a me controlar tão bem, mas se há coisa que passei a fazer em grande estilo foi cortar essas referências de quem quer que seja. Seja um amigo, um conhecido, um qualquer da esquina. Se não for por meio de palavras, basta-me uma cara feia para afugentar o embaraço que se caracteriza pelo físico que o carrega. Honestamente, acho desnecessário. Eu e todas as outras pessoas que passam por isto diariamente, seja lá por serem negras, ciganas, tenham tiques afeminados mesmo sendo homens, ou o cabelo curto e carregarem uma vagina entre as pernas.
Há que ter noção daquilo que se diz e pensa, em circunstâncias específicas. Independentemente da educação que tenham ganho na vossa casa, façam um esforço para pensarem por vós mesmos e quais os impactos de determinada ação, por mais simples. Em todas estas situações das quais fui protagonista, em nenhuma delas eu surtei. Mas bem que poderia ter sido o caso. Um dia destes e realmente perco a cabeça se me faltarem ao respeito como nunca antes. O problema é que mesmo que eu tenha razões para me manifestar de tal maneira, a culpa, por momentos, será sempre minha. Haja justiça ou não.

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