Porém, qualquer um, independentemente das habilitações que tenha, ao menos uma vez na sua vida fez ou disse coisas muito acima da sua natureza e condição, e se a essas pessoas pudéssemos retirar do quotidiano pardo em que vão perdendo os contornos, ou elas a si próprias por violência se retirassem de malhas e prisões, quantas mais maravilhas seriam capazes de obrar, que pedaços de conhecimento profundo poderiam comunicar, porque cada um de nós sabe infinitamente mais do que julga e cada um dos outros infinitamente mais do que neles aceitamos reconhecer.
José Saramago é daqueles autores de quem sei pouco, mas por quem me deixo fascinar bastante. Bastou-me ter lido dois livros seus, para que me deixasse enamorar pela sua sarcástica simpatia, a sua inteligência impressionante e a sua capacidade de manejar as palavras em seu bel-prazer. “A Jangada de Pedra”, acreditem ou não, foi o terceiro livro que li deste autor português e deixem-me que vos confesse que era exatamente aquilo de que estava a precisar, não pelo assunto da história – que já lá vamos -, mas pela presença cativante do narrador e no qual me refugio em todos os momentos em que preciso de inspiração.
Para mim, Saramago é um amigo ao qual recorro nos períodos de maior aperto criativo e existencial, pois, eu sei que ele jamais me falharia. Gosto de pensar que os seus livros são uma autêntica janela aberta para a especulação, para o inanimado, para o impossível e que apenas estava a aguardar pela oportunidade para ser moldado à nossa mercê. Junto deste livro, comprei um outro do mesmo autor, em segunda mão na feira do livro em Lisboa, há uns dois anos, “Todos os Nomes”. Comecei-o, mas ainda não lhe dei continuidade, priorizando, então, “A Jangada de Pedra”.
Compreendo quem critique o seu modo de expressão linguístico, mas o que me deixa em choque é o facto de não saberem colocar as adversidades de lado, compreendendo-as. Saramago concentrava em si uma capacidade de gerar dualidades críticas, sem que isso implicasse deteriorar a qualidade do seu trabalho e dedicação. Tenho vindo a denotar, pelo menos nestes três únicos livros que explorei, que ele muito apreciava brincar com o realismo mágico, usando-o como muleta para tecer críticas construtivas acerca da realidade política, social e cultural mundial, focando-se, essencialmente, no meio português.
É quase impossível não ficarmos de olhos a brilhar pela maneira poética e sarcástica com que ele, deliberadamente, reclamava das situações mais insignificantes, tornando-as em alvos de apreciação e chamada de atenção. Em “A Jangada de Pedra”, é posto em causa o individualismo patriota e todo um conjunto de camadas culturais e que, por uma catástrofe natural – embora seja correlacionada com ações de causa e efeito irreais! -, se vêem em crise. Todas as outras nações surgem em plano de fundo, mas sem nunca deixarem de cumprir com o seu papel de aparente modéstia e preocupação, sempre com intenções mascaradas e vinculadas a um objetivo comum: o da riqueza e apropriação das vontades dos demais.
É assombroso pensar que um livro escrito há trinta e três anos possa representar, de maneira tão crua e transparente, um conjunto de posturas e situações que se deixam perpetuar pela linha do tempo, se modificando, apenas, as figuras que por esse palco fora representam o que no livro é descrito. Não que estejamos a vaguear pelo oceano adentro, mas às tantas, é como se fosse. As personagens aos quais Saramago se dedica carregam um brilho singular e que nos toca da maneira mais incomparável, cosendo-se com as extremidades da nossa alma, sem intenções de nos abandonar. É como se nós nos tornássemos parte da sua história e, consequentemente, ela se tornasse nossa, gerando um fluxo existencial bastante saboroso e único.
Mais alguém por aí que goste de ler Saramago? Já exploraram esta história? Que outra recomendam? ♥
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