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Não sei se alguma vez cheguei a falar deste livro. Se não, nunca é tarde de mais. Numa conversa com uma amiga, relembrei-me do facto de ter sido o meu primeiro livro de 2022. Vi a adaptação há alguns anos numa aula de inglês, só sabendo tratar-se de uma anos depois. Na altura, Saramago estava longe de se transformar num dos meus autores prediletos. O amor começou ao de leve com o memorial do convento, escalando com as intermitências da morte.
Penso até que a minha admiração inicial inclinou-se mais para o modo revolucionário com que ele lidava com as regras da estrutura da escrita do que propriamente com os assuntos das suas obras… Seria no entanto mentira se dissesse que também eles não me chamam a atenção. Por vezes nem são os temas em si, mas antes o quão inusitado seria pensar neles e conceder-lhes um foco central. Como falar da morte? Da situação política de um país? Uma epidemia cega? Como podem temas destes brilharem tanto nas mãos de Saramago?
Simples, a sua ousadia conversa comigo a cada parágrafo – e que se contam pelos dedos das mãos, se formos pelos tradicionais -.
Gosto da ousadia dele, da sua frontalidade ao abordar cantos da sociedade que muitas vezes escolhemos desprezar. O ensaio sobre a cegueira é muito mais forte e explícito do que esperava. Há aqui cenas que me deixaram agoniada, sobretudo por se sucederem fora das páginas. Julgo que o seu objetivo não fosse o de enfatizar o papel da protagonista que não era cega, mas antes o de nos contar como tudo continuaria igual mesmo que um infortúnio assomasse a humanidade.
Sinto que em todos os livros de Saramago, ele não só interpreta certos factos e mitos como também explora os lados mais obscenos do ser humano. Ele não dá espaço para a empatia, somente para uma reflexão dura, sarcástica e visual. Devido a isso é que lhe aprecio tanto o trabalho, porque prefiro estar diante da realidade do que ficar presa a fantasias que não me preparam para nada.
Ele não só me ameniza o espírito criativo quando está perturbado, como também o convida a pensar com profundidade no que está debaixo do tapete.
Adoro ter esse espaço para questionar o que muitos escolhem não ver e creio que essa seja uma das lições do ensaio sobre a cegueira: cego é aquele que escolhe não ver, sentir e aceitar a sua comodidade, particularidades e, acima de tudo, responsabilidades. Cego é aquele que tem a possibilidade para aplicar a mudança e desvia o olhar por pura conveniência.
São esses os que alastram a cegueira pela sociedade fora, ajudando a que o filtro não condiga com a realidade… E são sempre esses que Saramago apresenta num cenário de puro caos, terror e alguma imaginação. Não acho improvável que ainda falte a alguém explorar esta obra, portanto, fica o meu convite para o fazerem nos próximos tempos!
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